https://nordestinadosaler.com.br/2021/06/entrevista-com-carla-castro/
1) Para além de professora, pesquisadora e escritora, quem é Carla Castro?
Sou uma mulher que escolheu como expressão do pensamento a palavra escrita. Que ainda na infância começou a se dedicar a produção textual, escrevia desde bilhetes a cartas para os amigos, mantinha diários com pensamentos, letras de músicas e poesias. Que se preocupa com as questões feministas, com a luta pela igualdade de gêneros, que se entristece toda vez que ouve um relato de misoginia e de feminicídio. Para além do cultivo das palavras também cultiva plantas, dentre elas cactos e suculentas e faz dessa dedicação não só uma arte, mas também um trabalho.
2) Sua dissertação de mestrado (2021) intitula-se “A escrita feminina cearense do século XIX: uma perspectiva de análise da poesia de Ana Nogueira e Francisca Clotilde”. Fale-nos sobre essa experiência.
Eu procurei algumas palavras que pudessem descrever a minha experiência do mestrado, mas não encontrei. As pessoas me diziam que fazer um mestrado era muito difícil, porque eu precisaria ler muito. Entretanto essa não foi a maior dificuldade. O que eu vivenciei não estava em nenhum manual para alunos ingressantes em uma pós-graduação.
Foram três tentativas, em 2015, 2016 e 2017. Na primeira e na segunda não obtive a aprovação, na terceira a linha de pesquisa do meu interesse “literatura de autoria feminina” não havia sido ofertada. Então elaborei um projeto que tinha como objeto de estudo a literatura não-ficcional de José de Alencar. Passados alguns dias, um aditivo ao edital de inscrição foi divulgado e dessa vez a linha de pesquisa “literatura de autoria feminina” voltava a ser apresentada. O aditivo apresentava uma vaga para o mestrado e uma vaga para doutorado e foi assim que abandonei José de Alencar e voltei para as minhas pesquisas sobre literatura de autoria feminina. E consegui a aprovação. Em 2018 eu iniciava os estudos de mestrado onde eu desenvolveria o estudo do dicionário de escritoras cearenses, começado ainda em 2006.
Em menos de três meses a minha orientadora Edilene Ribeiro Batista faleceu vítima de H1N1 e mesmo antes de sua partida o meu objeto de pesquisa já era questionado, pois a linha de pesquisa a ser desenvolvida deveria ser em literatura comparada. O que não poderia ser realizado através do dicionário de escritoras cearenses. Ao iniciar uma nova orientação novamente foi sugerido para que eu escolhesse duas escritoras, dentre aquelas que já eram minhas conhecidas (nascidas no século XIX), para que assim eu pudesse analisar os seus escritos identificando as semelhanças e as diferenças entre suas obras. E assim eu escolhi as escritoras Anna Nogueira Baptista e Francisca Clotilde Barbosa Lima. A Anna Nogueira eu já admirava por sua participação no jornal O Pão, enquanto a Francisca Clotilde eu relutei no início, pois eu gostaria de estudar escritoras que eram invisibilizadas da história e já existiam vários estudos sobre a obra A Divorciada e sobre o seu trabalho na educação, mas como os seus poemas ainda não foram todos catalogados e não existia nenhum estudo sobre a sua poesia eu acabei aceitando o desafio.
E muito gratificante quando você começa a estudar duas escritoras cearenses nascidas no século XIX e descobre que elas publicaram poesias em jornais do Brasil inteiro, do Nordeste ao Sul, os seus nomes e os seus escritos foram conhecidos. Aqui no Ceará foram as primeiras mulheres a participarem de agremiações literárias onde somente os homens tinham acesso, no caso o Club Literário Cearense e publicaram seus poemas na revista A Quinzena, no período entre 1887 e 1888. Hoje eu reverbero a participação de Anna Nogueira também na Padaria Espiritual, não apenas pela publicação de seus poemas no periódico O Pão, mas também por suas participações nas fornadas que podem ser conferidas no livro de atas e nos jornais da época, bem como um registro feito em seu diário e publicado por sua neta no livro Cadeiras na Calçada. Entretanto reescrever a historiografia é um desafio, mas que precisa ser enfrentado. Não podemos mais silenciar essas vozes que tiveram uma participação significativa na sociedade no final do século XIX e início do século XX, mas por não serem citadas pelos historiadores permanecem mudas e apagadas.
3) Por que você escolheu a Literatura produzida por mulheres? Ou você foi escolhida?
Ingressar no curso de Letras em 2003 foi uma alegria, primeiro veio o entusiasmo, depois a consciência do desafio e no final a angústia de um caminho árduo a ser percorrido. Logo me interessei pela Literatura Cearense e enveredei pelas pesquisas e não demorou muito para perceber que existia uma lacuna em nossa historiografia. Os nomes das nossas escritoras não estavam nos livros de Literatura. Após aquela constatação fui tomada por vários sentimentos, indignação, revolta, tristeza, e perante essa ausência de informações me comprometi ainda no ano de 2006 a realizar um estudo com o objetivo de revelar esses nomes, embora eu não houvesse localizado os nomes das escritoras nos livros eu tinha uma convicção de que elas haviam existido. E decidi publicar um dicionário que contivesse o maior número de escritoras cearenses. Respondendo a sua indagação eu acredito que fui escolhida. Eu não sabia ao certo a quantidade de escritoras que eu encontraria, mas com o passar dos tempos elas iam se revelando para mim.
4) Você é autora de “Resquícios de Memórias: Dicionário Bibliográfico de Escritoras e Ilustres Cearenses do Século XIX”, publicado pela editora Expressão Gráfica. Conte-nos a história dessa obra.
Eu costumo dizer que ao ingressar no curso de letras em 2003 logo no primeiro dia de aula após ouvir o professor Eduardo Luz falar sobre a importância de se estudar os autores cearenses no mestrado, eu sofri um encantamento. E desde esse dia essa expressão Literatura Cearense não saiu mais dos meus pensamentos. Em 2006 eu identifiquei a lei que institui o dia 17 de novembro como o dia da Literatura Cearense e organizei um projeto em comemoração a essa data. Apresentei a professora Elisabeth Dias Martins que na ocasião me propôs que eu elaborasse uma exposição de fotos para que os participantes desse evento pudessem conhecer quem eram os escritores cearenses, foi quando eu percebi que nos livros de literatura cearense não haviam os nomes de mulheres, e naquele mesmo momento decidi que faria um dicionário com o maior número de escritoras cearenses para que elas tivessem um reconhecimento e para que as pessoas que desejassem conhecer as nossas literatas que foram apagadas pelos nossos historiadores tivessem enfim uma fonte de consulta. A pesquisa foi hercúlea e levou mais de uma década. Fiz várias viagens, desde a Biblioteca Nacional a bibliotecas pelo interior do Ceará, adquiri mais de duzentos livros, livros raros pois aqui no Ceará temos pouquíssimo acervo sobre a temática e li vários jornais da época através dos microfilmes quando ainda eram possíveis de serem consultados na biblioteca governador Menezes Pimentel. Hoje temos acesso através da internet de hemerotecas onde podemos consultar vários jornais, mas ainda hoje não temos todos os jornais digitalizados, e mesmo os que estão digitalizados se você fizer uma pesquisa utilizando o buscador não irá encontrar 100% e para realizar uma pesquisa aprofundada você precisa realmente ler todos os periódicos. No ano de 2017 participei do edital das artes da Secultfor na categoria pesquisa literária e consegui a terceira colocação. E foi através desse edital que eu pude publicar o livro. Essa publicação ocorreu em 2019 durante a XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará. De lá pra cá tenho enviado exemplares para diversas bibliotecas públicas e bibliotecas de universidades do Brasil e do exterior com o objetivo de dar voz a essas escritoras.
5) Eu assisti a duas excelentes palestras suas e você mencionou essa frase: “Sim, cada morto deixa um pequeno bem, sua memória, e pede que cuidemos dele” (Jules Michelet), que inclusive é a epígrafe de sua dissertação. Como nós leitores podemos cuidar dessa “memória”?
Nós leitores, pesquisadores, estudiosos, podemos cuidar da memória de diversas formas. Preservando para que outras pessoas tenham acesso, publicando artigos e livros, fazendo palestras, rodas e clubes de leituras. Fazendo pesquisas, visitando bibliotecas, resgatando obras de acervos raros e reeditando, participando de editais e socializando descobertas.
Não deixar a memória se esvair e perecer, dando voz para que ela saia da obscuridade. Certa vez a esposa do neto de Anna Nogueira disse que haverá um dia em que ninguém se lembrará mais dela, e eu retruquei dizendo que enquanto eu viver ela sempre será lembrada.
6) Que mensagem você poderia deixar para os leitores / leitoras e também para aqueles que ainda não descobriam a importância de falar e debater sobre Literatura produzida por mulheres?
Estudar, escrever e falar sobre a literatura de autoria feminina é ecoar pensamentos e histórias que foram invisibilizadas somente pelo fato de serem mulheres. A reescrita da historiografia literária é um dever que deve ser exercitado de forma urgente, porque não podemos perpetuar um cânone que dá voz somente a elite, aos brancos e aos homens que estão eternizados porque foram eles que estavam no poder. Que tinham o poder e o direito de ler, estudar, escrever, publicar. Agora vamos dá voz aos silenciados que foram apagados da história por serem considerados minorias e que por isso não tinham voz e nem vez. As mulheres sempre participaram da história, dos movimentos sociais, intelectuais e culturais, mas que ao invés de serem participes foram apresentadas somente como coadjuvantes isso quando eram conhecidas.
Vamos agora fazer com que essas mulheres que nos antecederam sejam reconhecidas e valorizadas por suas ideias e por suas obras que merecem ser eternizadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário